Diários de ônibus, trens e até caminhão...

A ideia de um blog surgiu da intenção de mostrar meu Diário de Bordo a todos os amigos e da impossibilidade de fazê-lo com a rapidez que eu gostaria. Vai ele agora entrar na rede!

Nome:
Local: Divinópolis, MG, Brazil

6.11.05

O roteiro



18.10.05

O Diário

Diário de bordo – julho de 2005


Fabiano Fuscaldi


- Belo Horizonte, 12 de setembro de 2005 -




Mochileiros:
Uanderson Resende (Uans), 30 anos
Fabiano Fuscaldi, 24 anos


Duração da viagem: 24 dias – de 08/07/05 a 31/07/05

Países visitados: Paraguai, Argentina, Bolívia, Chile e Peru

Principais atrações: Cataratas do Iguaçu (Brasil, Argentina), el Chaco (Argentina), Quebrada de Humauaca (Argentina), Salar de Uyuni (Bolívia), Deserto de Atacama (Bolívia, Chile), Oceano Pacífico (Chile), Canyon del Colca (Peru), Cordillera Negra y Cordillera Blanca (Peru), ruínas de Chavín (Peru), Cuzco (Peru), Machu Picchu (Peru), Lago Titicaca (Peru), Trem da Morte (Bolívia)




Este diário começou a ser escrito já nos primeiros dias de viagem, mas foi perdido no final dela e enfim retomado nos meses de agosto e setembro. A idéia da viagem surgiu um ano antes com o filme Diários de motocicleta e, principalmente, ao lermos uma reportagem que mostrava ser possível ir a Machu Picchu sem gastar muito. E a idéia do diário surgiu da consciência de que ela teria que ser realmente inesquecível.

Notícias precedentes

Antes de iniciar este diário, é importante registrar de início que tivemos notícia de revoluções em toda a Bolívia, de um caminhoneiro brasileiro que morreu congelado no Chile alguns meses antes de nossa saída e, claro, do terremoto de 7,9 graus na escala Richter, a menos de um mês de nossa partida, também no Chile, mas com reflexos inclusive no Peru, na Bolívia e até no Brasil e, diga-se de passagem, justamente em cidades pelas quais certamente passaríamos. A seguir estão notícias desse tremor, retiradas do site oficial da Folha Online.

14/06/2005 - 09h20
Reflexo de terremoto no Chile assusta brasileiros


Leves tremores de terra foram sentidos na noite de segunda-feira (13) na capital e interior de São Paulo, além de Paraná, Goiás e Distrito Federal, como reflexos de um terremoto de 7,9 na escala Richter que causou ao menos nove mortes no Chile.

Em São Paulo, foram afetados bairros como Perdizes, Higienópolis, Pinheiros e Vila Madalena, Parada de Taipas e São Domingos. Leitores da Folha Online avisaram a redação sobre a ocorrência de tremores em outras localidades, como na região de Marília (444 km a noroeste de São Paulo).

Os tremores assustaram os moradores. Queda de livros das estantes ou o balançar das chaves nas portas foram alguns dos relatos feitos à Defesa Civil. Não há registros de vítimas ou prejuízos no Brasil.

De acordo com o professor Jesus Berrocal, do Departamento de Geofísica do IAG-USP (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo), as conseqüências do tremor foram mínimas no Brasil. "Não passou de uma tontura."

"Não há perigos de rachaduras, somente os prédios altos sob sedimentos tiveram breves oscilações", afirmou.

Em São Paulo, de acordo com Berrocal, as regiões central, norte e oeste, onde está localizada a avenida Paulista e bairros como Santana e Perdizes e cidades como Campinas (95 km de São Paulo) e Ribeirão Preto (314 km de São Paulo) estão mais suscetíveis a este tipo de tremor.

O motivo é a localização, pois são regiões construídas sobre sedimentos --rochas não tão consolidadas.

Susto

O economista Eduardo Assumpção, 23, afirma ter sentido os reflexos do tremor por volta das 20h, em seu apartamento localizado no 14º e 15º andares de um prédio na Vila Madalena (zona oeste de São Paulo).

"Quando fui até a sala para ver como minha mãe estava, percebemos que o lustre estava em movimento de pêndulo", conta. Folhas de plantas também estavam em movimento, ainda que as janelas permanecessem fechadas.

Assustados com a possibilidade de que a estrutura do prédio pudesse ser prejudicada, Assumpção e a mãe desceram pelas escadas. O corrimão vibrava. No térreo, vizinhos já aguardavam notícias sobre o ocorrido. "Sabia que devia ser reflexo de algum terremoto. Já aconteceu outras vezes", diz.

Temerosos, alguns moradores de um conjunto de prédios na Lagoinha, bairro nobre de Ribeirão Preto, deixaram os apartamentos. "Foi horrível, deu pânico", disse a empresária Vera Lúcia Baltazar, 52.

Terremoto

Segundo o Departamento de Emergências do Ministério do Interior, que fica em Santiago, capital chilena, o tremor, ocorrido às 18h48 locais [19h48 de Brasília] nas cidades de Iquique e Arica, no norte do país, atingiu 7,9 graus na escala Richter e 110 km de profundidade.

De acordo com a escala de Mercalli, que mede os efeitos do terremoto nas pessoas, no Chile, o terremoto teve uma magnitude de 10 a 11. Em São Paulo, a magnitude foi de 2 a 3. Tremores de magnitude 2 só são percebidos em locais altos e por quem está em repouso.


14/06/2005 - 09h48
Terremoto de 5 graus na escala Richter atinge sul do Peru

Um terremoto de 5 graus na escala Richter atingiu nesta terça-feira várias cidades na região sul do Peru, após um tremor de 7,9 graus na escala Richter atingir o Chile, causando a morte de nove pessoas.

O tremor desta segunda-feira pôde foi registrado também no Brasil, na Bolívia e no Peru.

O terremoto desta terça-feira no Peru foi sentido na cidade de Ica (300 km ao sul de Lima), e nas cidades vizinhas de Chincha, Cañete e Pisco. Não está claro se esse sismo é uma réplica [tremores secundários de menor intensidade que acontecem depois de um terremoto] do ocorrido no Chile.

O epicentro do terremoto, registrado às 4h29 (2h29 de Brasília), foi localizado no oceano Pacífico, a 55 km sudoeste de Ica, a uma profundidade de 36 km, segundo comunicado do instituto.

Apesar do pânico de alguns moradores da cidade, que saíram de suas casas com medo de desabamentos, a polícia informou que não houve registro de vítimas ou danos materiais.

Nesta segunda-feira, um tremor de 7,9 graus na escala Richter atingiu as cidades de Iquique e Arica, no norte do Chile, perto da fronteira do Peru e da Bolívia. O tremor foi sentido nas cidades peruanas de Arequipa, Moquegua e Tacna, localizadas nessa região.

O terremoto no Chile provocou a morte de oito pessoas e a destruição de 17 casas. O epicentro desse tremor foi localizado nas montanhas da cordilheira dos Antes, a 110 quilômetros de Iquique, segundo as autoridades chilenas.


17/06/2005 - 03h42
Lagos declara norte do Chile "zona de catástrofe" após terremoto
da France Presse, em Santiago

O presidente chileno, Ricardo Lagos, declarou nesta quinta-feira "zona de catástrofe" as províncias de Iquique e Arica, no extremo norte do país, afetadas pelo terremoto de segunda-feira passada que deixou 11 mortos e uma onda de destruição em várias cidades do interior.

O decreto do presidente, que percorreu as áreas devastadas pelo segundo dia consecutivo, permitirá agilizar a reconstrução e distribuição de ajuda, graças ao uso de fundos contemplados no orçamento nacional para enfrentar emergências.

O terremoto, que alcançou 7,9 graus na escala Richter, deixou mais de 6.000 desabrigados e 544 casas destruídas, de acordo com os últimos números oficiais.

Lagos permaneceu 48 horas em Iquique (1.460 quilômetros ao norte de Santiago), onde dirigiu pessoalmente os trabalhos de ajuda aos habitantes, após interromper na Suécia uma viagem que o levaria ainda à Holanda e Espanha.

"Minha obrigação era estar aqui", disse Ricardo Lagos, ao chegar à zona do violento sismo, que teve repercussões no sul do Peru, parte do território da Bolívia e até na cidade de São Paulo.

O presidente já foi às cidades de Camiña, Tarapacá, Pozo Almonte e Huara e, em seu segundo dia, desembarcou no povoado de Mamiña. Lagos também percorreu o Hospital Regional de Iquique, onde visitou 18 feridos.

Nesta quinta-feira, oito caminhões do Exército chegaram à região com 200 barracas. A distribuição de alimentos, roupa e materiais de construção continua.

Planejamento da viagem

"Hay que tener en cuenta que, para un viaje de ese tipo, tenés que romper. Tenés que ser mal hijo, mal hermano, mal novio, e irte. O si no, no irte. Y Ernesto, en ese sentido, era igual que yo.”
Alberto Granado


A primeira certeza que tínhamos era a visita a Machu Picchu, afinal, um mochilão pela América Latina que se preze deve tê-la obrigatoriamente no roteiro. Para chegar lá, porém, vimos que dependeríamos de organização, mas principalmente de sorte pra conseguir pegar o Trem da Morte – tão disputado nessa época do ano e tão explorado pelos cambistas. Então, depois de encontrar outras opções (como o Deserto de Atacama e a Quebrada de Humauaca) que se tornaram também imperdíveis para a viagem, resolvemos começar o passeio por baixo e deixar Machu Picchu por último.

De qualquer forma, não tínhamos antes da saída um roteiro fixo, sabíamos sim dos lugares que tínhamos que visitar de qualquer forma e, claro, algumas cartas na manga pra qualquer eventualidade. Chegamos até mesmo a considerar nosso retorno para o Brasil pelo Acre ou por Santiago, no Chile, devido às revoltas políticas na Bolívia.

O primeiro destino seria Foz do Iguaçu e em seguida o norte da Argentina até Salta. De lá, teríamos duas opções para ver o Deserto de Atacama: subir para a Bolívia – à cidade de Uyuni –, ou seguir a oeste para San Pedro de Atacama, no Chile. A segunda opção, pelo que vimos na internet, parecia mais improvável, já que não havia uma estrada pavimentada até o Chile e, além disso, passando primeiro pela Bolívia, tínhamos a vantagem de ver a Quebrada de Humauaca. O certo é que iríamos para um e logo em seguida para o outro país, depois teríamos como opção conhecer o norte do Chile e ter acesso ao Peru. Lá, visitaríamos certamente o canyon de Arequipa e, claro, Cuzco e Machu Picchu.

As cartas na manga – que acabaram sendo somadas a outras durante a própria viagem, pois sempre usávamos a internet para esse tipo de pesquisa – eram, de início, lagunas e nevados em Arica, no norte do Chile; Potosí, na Bolívia, a respeito da qual ainda teríamos que colher informações; e Huaráz, com suas lagunas, o nevado mais fácil de subir no mundo e onde há o encontro das cordilheiras Negra e Branca, ao norte do Peru. Como não sabíamos o que nos aguardava numa viagem tão sujeita a imprevistos, saímos de BH apenas com essas opções, mas preparados para muitas pesquisas tanto na internet quanto no boca-a-boca e perguntando às agências de viagem ao longo do caminho.



Vários lugares literalmente me roubaram as palavras, outros me arrancaram uns bons palavrões e outros meras exclamações que não esclarecem muito, mas todos eles, se descritos objetivamente, perdem seu encanto. Diante dessas parcas opções, visto que se trata de uma descrição, escolhi usar aqui a última delas mesclada com um pouco de objetividade, que pelo menos diz algo sem soar agressivo a nenhum ouvido. Por isso peço desculpas a quem ler essas anotações, ciente de que esses adjetivos pouco ou nada informam além da constante estupefação deste narrador, que é, aliás, a melhor e única descrição possível, a meu ver, de lugares cuja imponência nem fotos são capazes de traduzir.

Dia 1 – sexta-feira 08/07


- BH-Foz do Iguaçu -

Saímos aos trancos e barrancos de BH. Já deu pra ter uma prévia dos sumiços do Uans antes do início. A Cris e eu nos despedimos – estressados com o atraso do indivíduo – na rodoviária mesmo, ela foi pra Floripa e o Uans me chega às 7h50 pra saída do ônibus das 8h! A viagem foi tranqüila sem maiores acontecimentos além do marco de início de cafés ruins em toda a viagem e a explosão em minha boca e a conseqüente inconsciência momentânea ao morder uma pedra na farofa do meu almoço perto de Araxá. Foi incrível, minha vista escureceu em câmera lenta por mais ou menos 2 segundos e eu não pensei em nada, podia ser um atentado ao restaurante rodoviário onde estávamos, podia também ser uma indisposição estomacal, ou até sono mesmo. Depois dos tais dois segundos, recuperei a consciência e continuei, meio desconfiado, meu almoço.

17.10.05

Dia 2 – sábado 09/07


- Foz do Iguaçu – Ciudad del Este (Paraguai) -

Viajamos o dia anterior todo e chegamos em Foz mais ou menos às 10h. Arrumamos um guarda-volumes e pegamos informações turísticas na rodoviária. De lá fomos direto ao Paraguai – primeiro solo internacional de nossas vidas – comprar umas lembrancinhas... Nem soubemos da taxa de câmbio daquele país, pois todas as “lembranças” lá são pagas em dólar. Entramos de coletivo mesmo e a vista é assustadora com todos os motoqueiros tentando se matar e também aos passageiros que levam e os carros buzinando constantemente. Ficamos o dia todo naquela amostra de inferno no plano terrestre. Todas as pessoas parecem suspeitas, todas oferecem umas quatrocentas lojas diferentes que se encaixam perfeitamente às nossas necessidades e nos fazem andar bastante para nos desviar das lojas realmente confiáveis. O resultado dessas voltas por aqueles prédios de três andares cheios de lojas e todos idênticos, por dentro e por fora, é que, depois de finalmente encontrar, por conta própria, a loja que nos tinha sido recomendada, voltamos tontos de fome. Fechamos com um albergue no centro com água quente e café, e saímos pra comer. Todos os restaurantes fechados – eram 18h ainda. Comemos um grande sanduíche pra esperar e liguei pra casa. Em seguida fomos direto pra uma churrascaria destruir um rodízio com bifê e sobremesa (que não estava lá essas coisas) à vontade a R$12,00 para cada. Cansamos de comer picanha – experimentamos de todos os tipos e modos de preparo possíveis. Foi a primeira mostra de que posso ultrapassar meus limites muito além do imaginado nessa viagem! Voltamos ao albergue e, depois do banho quente no banheiro do jardim, um pulo na internet pra informações e e-mails. As mochilas ficaram jogadas no quarto e fomos dormir cedo pra aproveitar bem o dia seguinte.

Dia 3 – domingo 10/07


- Cataratas de Puerto Iguazú (Argentina) -

Como o lado brasileiro das cataratas não abre aos domingos, fomos visitar o argentino primeiro. Pegamos um coletivo para Puerto Iguazú e, de lá, outro para as cataratas – a estrada é muito bem cuidada com um gramado que a acompanha dos dois lados. A entrada é bastante organizada e uma guia de lá me perguntou se eu era espanhol – ela não seria a única, nessa viagem. Andamos muito no parque todo. É tudo impressionante! Daquele lado temos uma vista da parte de baixo das quedas e muito contato com a mata. No final, pegamos o famoso trenzinho até a Garganta del Diablo – alucinante! fantástica! Uma queda enorme em forma de U e uma vista geral das quedas brasileiras – sem dúvida o supra-sumo do dia! Aproveitamos pra comprar de uma vez a passagem de Puerto pra Salta pra noite seguinte. Voltamos à noite e, indicados pelo cara do albergue (só havia gringos no albergue e o único brasileiro, um cara que trabalha lá, também falava com sotaque inglês!) fomos procurar um rodízio de pizzas. Saiu bem mais barato que as carnes da noite anterior, apesar de as pizzas serem bastante modestas e os garçons servirem com muitíssimo mais freqüência as que não queríamos ver. Depois de uns 15 pedaços pra cada, voltamos pra dormir muito pra mais exercício na segundona muito braba – Ai que preguiça! Quando chegamos ao albergue, fomos avisados de que nossas malas tinham sido trocadas de quarto porque duas meninas que haviam reservado um chegaram e, na ausência de outro, ficaram com o nosso. Descemos, o brasileiro com sotaque nos mostrou nossas camas e vimos que apenas parte do que era nosso estava lá. Voltamos ao antigo quarto, incomodamos as duas pra pegar o resto das mochilas (ainda havia algumas lá!), tomei meu banho (agora no próprio quarto) e deixei minhas coisas todas jogadas na cama pra arrumar mais tarde, mas só depois de uma pesquisa na net e alguns e-mails. Enquanto o Uans fazia isso (só havia dois computadores, mas pelo menos eram de graça), fiquei no barzinho do hostel batendo papo com os gringos – um argentino (seria clichê dizer que era fã do Maradona?), uma espanhola, uma boliviana, um suíço e um inglês. O Uans desceu pra dormir e eu assumi o posto. Fiquei um tempo considerável além dos 20 minutos permitidos e um gringo que só falava inglês mas que tinha cara de japonês ficou lá esperando (e pressionando) a minha saída. Tudo pronto, desci pra dormir e um velho que só ficava no quarto e também só falava inglês me avisou, depois do meu susto ao não encontrar minhas coisas na cama, que o tal do japa tinha chegado no quarto e simplesmente tirado minhas coisas da cama e colocado no chão porque “aquela era sua cama”. Se soubesse disso, teria dormido na cadeira, mas não tinha saído daquele computador. Me arranjei numa cama e dormi bem, apesar do inglês, com quem tinha conversado lá fora e que dormiu no mesmo beliche que eu, ter chegado por último e feito muito barulho antes de deitar.

Dia 4 – segunda-feira 11/07


- Itaipu, Cataratas brasileiras, Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú (Argentina), Puerto Iguazú-Salta -

Acordamos cedo e fomos visitar Itaipu. O último horário de visitação gratuita pela manhã era às 10h. Saímos correndo do albergue, pegamos o ônibus – sempre no McDonald’s a 4 quarteirões – e chegamos à usina às 9h55! Ainda bem que não pagamos porque apesar de ser muito interessante conhecer, não acho que valha a pena pagar pela visita que fizemos. Na volta, quase nos aventuramos num caminho pra um templo budista, mas segundo informações, era afastado e perigoso pra turistas. Fomos embora para o centro pra pegar o resto do dinheiro que ainda faltava pra viagem e trocar boa parte dele em dólar. Também procuramos um remédio recomendado por alpinistas na net contra a altitude, mas as farmácias não tinham nem notícia. Depois paramos no correio pra enviar as encomendas dos amigos do Uans. Esperamos uma fila enorme e ele não pôde enviar nada porque não havia nota fiscal.

À tarde fomos visitar o lado brasileiro e ficamos impressionados pela desorganização na entrada – um amontoado de gente, uma fila quilométrica e um barzinho de uns 8m2 com um caixa e uma atendente pra todo mundo. Entramos aos trancos e barrancos, subimos no ônibus de dois andares que nos deixou na entrada do parque. Começamos o passeio que nos pareceu meio sem graça. Depois fomos chegando perto das quedas e ficamos impressionados. O lado brasileiro das cataratas mostra as quedas de cima e a vista é espetacular. Ficamos até o pôr do sol. Pra ir embora, outra fila enorme e, segundo o cara do albergue, o último ônibus de Foz pra Puerto Iguazú saía às 20h do “nosso” McDonald’s. Às 19h entramos no ônibus dentro do parque pra saída e esperamos já bastante preocupados pelo coletivo dali à cidade, que chegou às 19h25 e, ao McDonald’s, às 19h45. O Uans correu pro albergue pra arrumar as coisas e tomar banho enquanto eu corri pra descarregar as fotos em CD. Corri em seguida pro albergue e, como minhas coisas já estavam prontas, saímos dali correndo com todo aquele peso em bagagens de volta pro McDonald’s pra esperar, com muita esperança, pelo último ônibus pra Puerto. O cara do albergue nos fez um preço super-híper-camarada. Chegamos lá exatamente às 20h05. Esperamos uns 5 minutos e nada. O Uans foi perguntar na esquina a um taxista se a condução já havia passado e eu, num susto de preocupação, comecei a procurar pela passagem pra Salta – não me lembrava onde a tinha deixado. Exatamente na hora em que encontrei, notei um senhor atrás de mim que dava sinal pra um ônibus parar. Sem saber, ele salvava, senão nossas vidas, pelo menos uns bons Reais. Era o nosso coletivo. Olhei pra esquina e acenei pro Uans que veio correndo enquanto eu pedi ao motorista pra esperar que eu pegasse as mochilas. Entramos comemorando o quanto o nosso cansaço permitia.

Na fronteira, batemos o carimbo depois de um interrogatório desconfiado e, na volta ao precioso ônibus que nos deixaria na rodoviária de Puerto Iguazú, um policial mal encarado nos fez descer. Vimos o nosso ônibus ir embora sem nós às 20h50. O mal-encarado nos deixou esperando numa salinha até a entrada de um outro, muito melhor de cara, que nos perguntou sobre equipamentos eletrônicos e, depois de várias perguntas e de muito examinar nossos equipamentos fotográficos, finalmente nos disse que teríamos de pagar uma “taxa” de US$150,00 cada um para atravessar com aquilo. Olhamos um para o outro e argumentamos muito e, sem muita demora, ele acabou nos deixando passar sem maiores problemas. Apontou inclusive um lugar onde chamaríamos por um táxi. Este chegou às 21h05 (pra quem tinha passagem comprada pra dali a 20 minutos pra rodar 900km, estávamos consideravelmente atrasados) e nos deixou, enfim, no terminal às 21h15. Ufa! Daí seriam 26h de viagem até Salta, passando pela famosa região (nordeste) do Chaco argentino.

Dia 5 – terça-feira 12/07


- Puerto Iguazú-Salta -

A passagem foi cara (mesmo porque o Peso argentino valia o mesmo que o nosso Real), mas o ônibus servia todas as refeições do dia (o jantar foi o melhor, disparado!). O ar condicionado deixou a noite gelada, mas, na manhã seguinte, acordamos com muito calor. Fomos informados de que o ar estava com problemas e a partir daí só soltaria uma brisazinha até o final da viagem. O calor insuportável dentro do ônibus com as janelas fechadas agravou-se consideravelmente porque atravessaríamos durante todo aquele dia o Chaco argentino, uma região muitíssimo parecida com o interior do nordeste brasileiro. A Rota 16 é uma reta interminável com uma paisagem só ao longo dos 900km – uma planície de vegetação seca e poeirenta. A cada parada ficávamos impressionados com a pobreza dos vilarejos. Às 15h paramos numa cidadezinha, sempre empoeirada e mínima, mas enorme em comparação aos povoados por que passamos, e, claro, descemos pra tomar ar numa praça central. Dali dava pra ver quase a cidade toda e contei mais ou menos umas dez pessoas durante os 15 minutos que fiquei sentado num banco. De volta pro forno do ônibus pra mais chão pela frente. Chegamos em Salta (primeiro choque térmico da viagem porque ali fazia muito frio) às 23h e a agência onde compraríamos nossa próxima passagem só abriria às 5h. Tivemos tempo pra lavar a cabeça no banheiro pelo menos pra refrescar um pouco da viagem que nos fez grudar nas poltronas e nos sentamos no chão da rodoviária com as malas ao redor. Nisso apareceu uma argentina também mochileira e também fazendo hora até o dia sair e ficamos batendo papo pra matar a monotonia da espera.

Dia 6 – quarta-feira 13/07


- Salta-La Quiaca, Humauaca, La Quiaca-Villazón (Bolívia), Villazón-Uyuni -

Batendo papo ali no chão apareceu um boliviano vendendo colares, pingentes, pedras trabalhadas e pulseiras. Sentou-se conosco e era mais um que matava tempo de espera pro ônibus. Pegamos boas informações sobre a Bolívia – especialmente sobre as revoltas que aconteciam – e ficamos mais tranqüilos pra seguir viagem até lá. Mais tarde ficamos sabendo que ele e seus amigos pegariam o mesmo ônibus que o Uans e eu – pra San Salvador de Jujuy – e ele nos pediu pra comprar alguma coisa pra ajudá-lo a pagar a passagem. Cada um comprou uma lembrança e ele agradeceu muito. Entramos às 5h30 no ônibus e literalmente apagamos depois daquela noite em claro. Mal vi nosso amigo boliviano descendo em Jujuy, olhei pela janela e vi um terminal como qualquer outro, mas já com um paredão gigante de cordilheira atrás dele e desmaiei de novo num sono profundo que só foi interrompido com uns cutucões sutis do Uans que levantavam minha perna. Acordei com o ônibus já na famosa Quebrada de Humauaca. Impressionante! Todos os demais no ônibus comportados assistindo filme no DVD e nós dois revesando os olhares entre um lado e outro das janelas pra ver os paredões de várias cores que ladeiam a estrada até chegar à Bolívia, tudo isso com o rio que acompanha cada hora de um lado da estrada.

Era só o começo da aventura toda. Chegamos a La Quiaca, última cidade da Argentina já a uns bons metros de altitude, perto da hora do almoço. Daí em diante, só frio. Pegamos as malas e fomos direto pra fronteira. Agora sim, passamos sem problemas (tirando a demora absurda amenizada pela furada da fila) e pegamos um táxi, já em Villazón (Bolívia), até a casa de câmbio (cada dólar valia 8 Pesos bolivianos) e, em seguida voando até a estação ferroviária. Os ônibus dali demorariam um século nas estradas de chão pra chegar a Uyuni e o único e, por isso, disputado trem do dia era a única esperança. Chegamos à estação às 13h e a bilheteria abriria às 14h. A fila já estava grande. Preferimos nem pensar na possibilidade de dormir naquela cidade depressiva sem passagem de trem! Fizemos as contas e vimos que precisaríamos de mais pesos bolivianos pra comprar os bilhetes – dá-lhe Fabiano correndo (literalmente) de volta pra casa de câmbio antes que abrisse a bilheteria. Segundo informações em site oficial da internet, a cidade está a 3442m acima do nível do mar. Mas corri 4 quarteirões como se estivesse na praia, e acrescente-se o estômago vazio e a noite mal dormida, e de repente, no quinto, a rua à minha frente já estava escura e tremida, minha cabeça pulava a cada passo da corrida e o ar parecia simplesmente não entrar no pulmão. Levei um tempo pra conseguir parar a corrida sem cair e passei a apenas andar muito rápido. Troquei o dinheiro e cheguei à estação quando a janelinha do guichê tinha acabado de ser aberta. Fomos obrigados a comprar um bilhete em cada classe pela falta de vagas, mas já estávamos eufóricos de alegria de não ser obrigados a dormir ali. Isso porque os argentinos que estavam na nossa frente na fila ficaram na dúvida se iam pra Tupiza ou Uyuni e, enquanto pensavam, o Uans chegou com o dinheiro na cara da vendedora que não hesitou – duas passagens pra Uyuni! Fizemos hora até a partida do trem e o Uans insistiu em ir na classe inferior porque ia apagar de sono. Enquanto isso, o Uans descobre que tinha deixado todos os textos que eu tinha impresso em BH e que tinham informações valiosas dos lugares pelos quais passaríamos, além do mapa da Argentina e de um ótimo guia sobre o Chile. Nos separamos e, já no vagão, ao meu lado um pai com um menino de uns 5-6 anos despedindo-se da mãe pela janela dizendo “Mamá, el corazón, la mitad!” me fez lembrar de casa. Durante a viagem em uma poltrona que não me cabia direito, assisti a muitos filmes ruins no DVD e me esforcei pra dormir e não ver o tempo passar. O trem tinha calefação e não sentimos a mudança de tempo lá fora. Avistamos da janela uma paisagem muito parecida com a Quebrada argentina, muito bonita. Chegamos em Uyuni às 23h30 e, num frio congelante (ficamos sabendo que estava fazendo -15º naquela noite), saímos pra procurar uma agência recomendada na internet e um hotel. Encontramos facilmente a nossa agência, mas todas estavam fechadas e o hotel mais barato ali perto oferecia água quente (num banheiro comunitário).

Dia 7 – quinta-feira 14/07


- Deserto de Atacama (dia 1) -

Fomos dormir a 0h30 mais ou menos – todas as roupas de frio que tínhamos, mais saco de dormir, mais todos os cobertores oferecidos pelo hotel não nos impediu de tremer de frio lá debaixo! Acordamos cedo e tomamos cada um o seu banho quentíssimo e saímos pra esperar abrir a tal da agência. Deram 9h e nada de abrir. Saímos pra comprar numa feirinha uma calça de lã pra usar debaixo da calça e gorro de alpaca (ridículo) pra agüentar o frio daí pra frente. Procuramos também Coca-Cola gelada, mas só víamos refrigerantes em prateleiras e nenhuma geladeira. A moça da venda disse ao Uans que lá não existia geladeira, mas nem precisa existir, à temperatura ambiente a Coca estava ótima! Depois de um atraso de duas horas, a agência abriu e acertamos com a mulher – US$60,00 pra cada um pelo passeio de 3 dias que nos deixaria em San Pedro de Atacama, no Chile. Eram 11h da manhã e quase todos os 4x4 já na estrada pro salar e nós na porta da agência esperando o motorista chegar... Já estávamos preocupados e o Uans pensando na grana que tinha dado adiantado. Encontramos 3 brasileiros que fariam o passeio conosco também preocupados. Quando já achávamos que tínhamos levado um bolo, aparece o motorista e começa a carregar o carro. Ficamos sabendo pelos brasileiros que deveríamos bater o carimbo nos passaportes ali mesmo em Uyuni, pois sairíamos do deserto direto pro Chile e não haveria outro lugar pra fazê-lo. Como tínhamos ouvido dizer, a polícia pede uma “taxa” de saída, que é proibida – pagamos indignados 15 pesos bolivianos. O início do passeio tem uma parada na beirada do salar pra comprar lembranças feitas de sal e pagar pra tirar fotos das crianças. Isso sem contar com o museu de sal, que é nada mais do que uma casinha que tem apenas uma pequena sala com alguns objetos de sal e onde se cobra um preço absurdo – que você só fica sabendo, se não perguntar antes, na saída. Claro que o desavisado do Uans entrou lá, tirou fotos e, depois de ser cobrado, inventou que ia chamar uma turma enorme de amigos lá fora pra entrar também e o resultado é que a mulher deve estar esperando até hoje a turma toda.

Dali, rodando encima do sal, fomos pro meio do salar com uma vista impressionante. Quando se pode ver o horizonte, há vulcões e nevados, se não, é o sal branco e o céu azul e mais nada! Maravilhoso. Em seguida almoçamos no Hotel de Sal. O nome não é à toa, tudo aquilo a que estamos acostumados a ver de madeira ou cimento em casa, lá, é de sal. As poltronas são cobertas por pano no assento e o apoio para os braços soltava farelos de sal a cada vez que eu apoiava. Almoçamos bem e fomos a um dos pontos altos desse passeio – a Isla del Pescado. Uma formação rochosa gigante no meio de todo aquele sal simplesmente lotada de cactos também gigantes que crescem 1cm ao ano – um deles tinha 12,3m de altura e mais ou menos 70cm de diâmetro. É impressionante! Num dos lados vê-se um vulcão bem distante e, da ilha, rumamos pra ele em linha reta e tivemos uma noção de quão longe estava. Até tomarmos a estrada ao lado dele, era apenas a metade do caminho e só no fim da tarde chegamos no povoado onde dormiríamos já de noite. Chuveiro bem quente e quartos pra cada turma. Quando saí do banho o Uans me contou a surpresa que teve no jantar: chegou uma panela de sopa e todos se serviram bem e ainda sobrou muito pra mim. Quando já não pensavam em comer, chegam travessas de arroz, salada e batatas fritas, além de uma com frango. Todos ficaram boquiabertos. Quando cheguei todos estavam acabando e a comida ainda me encheu bem. Depois do banho de todos, a luz foi cortada pra economizar (já é inacreditável haver luz num lugar daquele). Pra vestir a roupa depois do banho, minha calça de lã rasgou na perna e tive que usar meus dotes (quais exatamente, eu não sei) de artesão pra costurá-la, mas isso com o agravante de usar apenas velas e lanterna pra enxergar e, claro, devido ao frio, usando a calça que costurava. Claro que o serviço ficou de quinta categoria, mas foi mais fácil do que imaginava e, depois de tamanho desafio em condições tão adversas, já encaro qualquer costura que me apareça. Dormimos nas mesmas condições climáticas da noite anterior, descobertos somente o nariz e a boca e olhe lá!

Dia 8 – sexta-feira 15/07


- Deserto de Atacama (dia 2) -

Acordamos depois de uma boa noite de sono e seguimos pro meio do deserto (se é que já não estávamos lá). Rumamos novamente pra um vulcão e, depois de muito tempo, ele cresceu na nossa frente e pegamos uma “estrada” – que na verdade são marcas de carro – que o ladeavam. No início desse caminho, o motorista pára o carro sem um motivo aparente. Todos nos olhamos com cara de interrogação e ele de repente aponta pro capô, ao lado direito: saía uma fumaça preta de dentro do motor. Descemos pra tirar foto do carro enguiçado no deserto com o vulcão no plano de fundo. Estava muito frio, mas o vento estava a favor da direção do carro e não resfriava o motor, que fazia um esforço enorme pra andar sobre pedras. O motorista pegou parte do nosso suprimento de água potável – que já não era como combinado – e matou a sede do radiador. Seguimos viagem e só eu tive coragem de perguntar quais as condições do nosso veículo. Ele garantiu, sem mudar a expressão, que estava bem e parecia nem se importar muito com a situação – já devia estar acostumado, pensei. A partir daí, ele iniciou uma espécie de tique que não terminaria (se é que ainda não terminou) até descermos daquele carro pra chegar na fronteira com o Chile: o carro tinha um paninho cobrindo o painel contra o sol cujas franjinhas tapavam também parte das informações contidas nele e o “tique” do motorista era, sem exagero, de 5 em 5 segundos, até o final da viagem no dia seguinte (repito: de 5 em 5 segundos), levantar as tais franjinhas do pano pra olhar o nível de aquecimento do motor. Por mais que eu tentasse ignorar e olhar pela janela a incrível paisagem do deserto, onde congelaríamos se o carro estragasse, via pelo canto dos olhos a interminável seqüência de movimentos de desprender os olhos da estrada pra levantar o paninho e conferir o nível de aquecimento do motor... Dava nos nervos! Até que chegamos num trecho em que havia uma pequena lagoa e o motorista parou pra abastecer a garrafa de um litro que tinha acabado de esvaziar no radiador. Todos de dentro do carro ficamos olhando aquilo um tanto preocupados. Nisso, vimos o motorista pisar na lagoa e não afundar nem molhar o pé. Volta ele com a garrafa vazia enquanto todos correm pra lagoa pra atirar pedras e tirar fotos. Ele disse simplesmente: Está congelada! Não podíamos acreditar, em plenas 11h da manhã, aquela lagoinha estava completamente congelada. Dois dos brasileiros chegaram a jogar uma pedra nela que rolou como se estivesse no cimento. Seguimos viagem e o único que não sentia frio era o motorista, com seu tique interminável. Passamos muito chão e chegamos ao Mirante do vulcão (aquele ao lado do qual o carro quase nos deixou), onde fizemos uma parada pra fotos. Um amontoado de pedras enormes, tudo sempre coberto de poeira e um vento inacreditável que nos desequilibrava e aumentava ainda mais o frio. Voltamos pro carro pra mais chão e finalmente chegamos famintos à primeira de várias lagunas a visitar naquele dia. Não sabíamos ainda, mas foi a mais impressionante de todas. Uma mistura de cores inacreditável, nevados ao redor e vários flamingos e gaivotas voando e nadando naquela água gelada. Ali almoçamos na presença de outros carros com vários turistas – como eu disse na ocasião, foi o melhor pior almoço da minha vida: arroz colorido, cebola, tomate e pedacinhos de atum formando um mexido, tudo isso, depois de não mais de 2 segundos no prato, já estava absolutamente gelado. A fome é realmente o melhor tempero. Até me arrisquei num suco de pêssego de caixinha – inacreditável do que é capaz um ser humano com fome...

Dali saímos pra conhecer as outras lagunas com seus flamingos, passamos por um lugar com pedras cuspidas por vulcões de formas muito estranhas – sempre com o tique do motorista e algumas paradas pro pobre do carro beber sua agüinha – até chegarmos à famigerada Laguna Colorada, onde havia um hotel de frente e o vulcão Licancabur atrás – nosso abrigo pra noite. Não era tão bonita quanto esperávamos e tínhamos visto na internet, talvez pela época do ano. Mas o que não esperávamos era o frio que fazia ali – chegamos às 18h e o termômetro marcava -15º! O Uans e eu ainda nos aventuramos a uma caminhada pra ver a lagoa de perto, mas voltamos bem rápido porque já escurecia.

Devido à completa falta de higiene, não havia a menor condição de usar o banheiro pra qualquer coisa quanto mais tomar banho, mas como nos haviam dito que havia banho com água quente, reclamamos com nosso motorista e ele respondeu que ali era impossível, uma pessoa que se arriscasse congelaria na hora. Não havia água nem pra escovar os dentes, mas, também, eu não confiaria na água mais cristalina que saísse por aquela torneira. Nos conformamos com aquilo, escolhemos nossas camas num quarto só pros 5, jantamos às 20h e não havia como sair do hotel pra conhecer o vilarejo. O vento era fortíssimo e o frio era descomunal. Os europeus que ficaram no quarto ao lado passavam pelo corredor sempre reclamando do frio – nunca achei que ouviria isso de europeus... Depois do jantar fomos dormir porque era a única maneira de aquecer o corpo. Cada um com todas as suas roupas, seu saco de dormir e mais os cobertores do hotel (dois dos brasileiros colocaram um dos cobertores dentro do saco de dormir). Literalmente apagamos de sono.

Dia 9 – sábado 16/07


- Deserto de Atacama (dia 3), San Pedro de Atacama (Chile), San Pedro-Calama -

Combinamos com o motorista de acordar às 4h para sairmos às 5h porque deveríamos visitar mais alguns lugares e chegar a tempo pra pegar o único ônibus pra San Pedro. Acordei sem despertador desesperado de dor de cabeça e rezando pra estarmos perto das 4h. Olhei no meu relógio: 2h15. Saí de dentro do saco, sentei na cama apesar do frio e fiquei massageando a cabeça e tentando me convencer de que aquilo passaria logo. Nunca senti uma dor de cabeça tão forte na vida, me dava tontura e enjôo. Só de pensar no banheiro e no seu fedor, já ajudava no convencimento de que aquilo passaria. Sentia uma sede grande e a única garrafa que tinha estava quase vazia. Bebi poupando os goles pra mais tarde. Fiquei ali tanto tempo que acordei os demais. Um por um, eles começaram a conversar e isso também me ajudou. O Uans também acordou e acabou com meu suprimento de água. Segurar aquela dor toda foi o melhor e mais audacioso trabalho psicológico da minha vida. Deitei depois de um tempo sem fechar o saco de dormir porque me sufocava – preferi sentir um friozinho a mais. Fui vencido pelo cansaço e dormi em seguida. Acordamos às 4h, arrumamos as coisas e ficamos esperando o motorista que não chegava nunca. O Uans e eu fomos obrigados a tomar um dorflex do nosso amigo pra agüentar a dor. Melhoramos em 15 minutos e não tivemos mais nada. Às 5h30 demos uns 7 passos da porta do hotel até o carro parado em frente e quase congelamos – literalmente! Fazia um frio de -30º e os cinco com todas as suas roupas, dentro do carro fechado – o motorista, inabalável, estava no teto amarrando as mochilas – tremíamos de frio. Durante o caminho todo daquela manhã, todos ficamos mexendo com os dedos dos pés para que não congelassem. Nossa viagem pelo deserto entrava no seu último dia. Vimos o sol sair de trás das montanhas na subida ao vulcão Licancabur. Chegamos à altitude máxima da viagem no Deserto de Atacama: 4900m acima do nível do mar, ao lado do vulcão. Dali fomos ver os gêiseres e seguir até a Laguna Blanca – maravilhosa – e, ao lado dela, a Laguna Verde – sensacional, de longe, a mais linda de todas. Apenas o Uans e eu descemos do carro pra admirá-la e tirar fotos – fazia um frio sem igual e o vento quase atirou aos dois barranco abaixo até a lagoa. A vista é simplesmente impressionante. Não parecia que eu estava ali de verdade, parecia uma superprodução que colocava aquela imagem da lagoa enorme e inteiramente verde no meio daquela poeira do deserto, no meio do nada, com o Licancabur imediatamente atrás de si. As fotos não conseguem mostrar a beleza daquilo! Voltei ao carro correndo porque o vento assim quis que fosse. Dali de perto sairia o nosso ônibus pro Chile. Os brasileiros estavam impacientes lá dentro. Chegamos na tal “estação” depois de percorrer ao todo 860km no deserto e encontramos o resto dos turistas que faziam o mesmo percurso. Tomaríamos café-da-manhã, mas como um dos brasileiros havia esquecido seu saco de dormir alugado lá no hotel, o motorista nos deixou ali sem comida doido de raiva. O Uans e eu, que nada tínhamos com aquilo, sentimos dó dele e pesar por não termos tido a chance de agradecer pelo passeio muitíssimo em conta.

Pegamos nosso ônibus pra San Pedro e chegamos até a fiscalização da fronteira, uma casinha de tijolo e cimento no meio do nada onde o motorista cuidava da burocracia. Todos esperando lá dentro, vimos o motorista demorar o dobro do tempo normal pra percorrer a distância da tal casinha ao ônibus por causa do vento que o arrastava pra trás. E o ônibus, lotado com aproximadamente 30 pessoas, balançava muito, como se várias pessoas do lado de fora o empurrassem de um lado pra outro. Dali até o solo chileno eram poucos metros. Soubemos onde começava o Chile pelo asfalto – que não víamos havia já alguns dias. Na viagem curta, cochilei um pouco e quando acordei não vi o horizonte. Acordei o Uans e mostrei a janela: havia uma tempestade de areia naquele momento. A nuvem de poeira que vimos devia ter uns 10m de altura. Passar pela fronteira do Chile foi difícil não pela revista de malas, mas pela areia batendo na cara.

Ficamos inteiramente empoeirados quando descemos em San Pedro pra pegar mais poeira ainda. Escolhemos o albergue onde dividiríamos quarto com os mesmos brasileiros e saímos, apenas nós dois, pra trocar dólares (100 Pesos chilenos valiam mais ou menos R$0,50), procurar uma agência e começar o passeio naquele dia mesmo. Fomos muitíssimo mal atendidos e recebemos a notícia de que os passeios só seriam possíveis dali a dois dias por causa da tempestade. Vimos também o abuso nos preços dos passeios, sem contar que eles duravam apenas meio dia, teríamos que ficar a tarde toda sem fazer nada depois de um passeio pela manhã. Até que, numa terceira agência, um cara nos atendeu bem e nos disse que se havíamos visto tudo o que vimos em Uyuni, San Pedro, onde planejávamos ficar uns quatro dias, não nos traria novidades. Decidimos então abandonar aquela cidade cara, empoeirada e que nos recebeu tão mal e subir logo pra Arica - fronteira com o Peru. Teríamos quatro dias de sobra. Compramos nossas passagens até Calama (95km dali, que custaram apenas um pouco mais que a Coca-Cola que bebemos num restaurante) e as de lá até Arica – deixamos nossas malas na própria agência, em San Pedro, para, até a saída do ônibus à noite, passearmos mais tranqüilamente. O engraçado é que as malas ficaram ao lado do balcão, no chão mesmo, à vista de todos e aos cuidados da mulher que atendia as pessoas e o telefone ao mesmo tempo – o importante, na maioria das vezes, é ter fé. Sairíamos de noite. Aproveitamos pra andar um pouco pela cidade e planejar melhor a viagem a partir dali, já que tínhamos poucas oportunidades pra isso. Depois disso, lembrei-me de ver na internet que havia um museu na cidade e o encontramos facilmente. Depois de uma rápida visita, voltamos pro albergue pra negociar um banho com a mulher. Acontece que o Uans falou em português (“banho”) e a mulher, claro, pensou em espanhol (“baño” – que significa simplesmente banheiro). Imagina o que ela não pensou quando entendeu que queríamos negociar um preço pra usar o "baño" do hostel... Tivemos que sair pela cidade pra perguntar e até encontrar um hostel que tinha uma entrada de garagem e, ali mesmo e com uma janela que qualquer um alcançava, um banheiro que alugavam pra banhos (em português). Pagamos a moça e cada um tomou seu banho valioso depois de tantos quilos de poeira (até lavei um pouco a beirada da calça e da jaqueta), baixamos mais algumas fotos em CD e corremos pro ônibus que - como sempre acontecia no nosso caso - já estava saindo. A viagem foi rápida e tranqüila até Calama. Na rodoviária de lá, tivemos tempo pra lavar as roupas rapidamente na pia do banheiro e, pra esperar a saída do outro ônibus, pedimos um “sandwich churrasco”, esperando um baita dum hambúrguer de boi e o que recebemos foi um pão enorme com salada e... salsicha! Belo churrasco o deles! Por cima havia um molho verde que cobria tudo. Olhamos aquilo, olhamo-nos desconfiados e, na fome que nos matava, devoramos tudo em segundos. E não é que o tal molho verde era que dava o "tchan" na coisa toda? Ficamos batendo papo e assistindo a um programa de calouros chileno (não menos ridículo que os nossos) até fechar o restaurante. Depois saímos e sentamos no chão da rodoviária e o Uans comprou uma barra de chocolate “Bambino”, tão barata que me deixou preocupado, mas que também nos surpreendeu de tão gostoso. A viagem pra Arica foi um sono só, pra variar, desmaiamos.

Dia 10 – domingo 17/07


- Calama-Arica, Arica-Tacna (Peru), Tacna-Arequipa -

Chegamos a Arica num domingo londrinamente nublado (mais tarde soubemos que o céu por lá é sempre assim) e corremos pra nos informar sobre o passeio que tínhamos visto no guia perdido pelo Uans na Argentina. No café encontramos, ou fomos encontrados por um casal de Florianópolis que nos chamava pra meiar um táxi até Tacna (no Peru), pois iam, como nós, pra Arequipa em seguida. Falamos do passeio em Arica e nos despedimos. Fomos depois pro centro, às 8h, pra procurar a agência e vimos que só abriria às 9h. Aproveitamos pra conhecer o Pacífico e o Morro de Arica, uma pedra de 130m solitária, de frente pra praia. Vimos gaivotas e pelicanos e molhei a mão no mar de lá. Voltamos pra agência e um senhor muito simpático que varria o chão nos disse que o passeio de domingo tinha saído cedo e já tinha sido agendado na semana anterior e que só agendaríamos um na terça. Diante da impossibilidade de ficarmos ali por tantos dias sem fazer nada, resolvemos seguir viagem. Troquei dólares em Soles (um dólar equivalia a 3,22 Soles) peruanos enquanto o Uans levava umas cantadas pesadas dum chileno, depois ligamos pra casa e pegamos um táxi até o “terminal de táxi-lotação pra Tacna” – digamos assim. Com isso, tínhamos mais dias ainda de crédito, pois já estávamos chegando ao Peru. Tive então a idéia de tirar uma das cartas da manga: logo após a visita ao Canyon de Arequipa, vamos ver o encontro das cordilheiras em Huaráz!

Batemos nossos carimbos e estávamos no Peru já no décimo dia de viagem. Seguimos pra Tacna, onde compramos passagens pra Arequipa, mandamos e lemos e-mails depois de uma semana sem dar notícias e almoçamos. O ônibus de 13h15 saiu muito atrasado – o que seria uma constante até o final de toda a viagem – e num sol destruidor. A Viação Flores foi uma das piores que pegamos. Foi no Peru que vimos pela primeira vez que as mochilas que iam no bagageiro não tinham selo nem nenhuma espécie de controle.

Tacna é uma zona franca e, dentro do ônibus, uma mulher do meu lado levou uns 30 minutos pra se sentar porque estava escondendo produtos espalhados dentro do ônibus inteiro. Teve inclusive a audácia de nos pedir pra esconder uma garrafa de uísque conosco: "no, señora, muchas gracias". Na parada pra revista policial, o ônibus passou sem problemas. No final da viagem, porém, chegando em Arequipa, outra revista e os policiais desceram rindo com mais ou menos 10 litros de uísque na mão...

Chegamos em Arequipa já de noite, pegamos referência de um hotel na rodoviária e de uma agência pra conhecer o Cañón del Colca. O hotel descaracterizava a nossa viagem: um quarto com três camas largas e, algo inédito até então na viagem, não-côncavas(!), banheiro brilhando como novo, ducha quente, varandaS e até TV a cabo. Depois do banho, o Uans saiu pra se informar da agência e eu, além do banho mais confortável até ali, aproveitei pra lavar direito minha roupa e colocar as baterias dos equipamentos pra carregar. Chegamos até a assistir parte de um jogo do Real Madrid e alguns trechos de Record, SBT e Globo. O Uans voltou com a informação de que dava pra gente fazer o passeio por conta própria. Saímos pra comer e olhar informações na internet num cyber-café muito bacana. Do hotel ligamos pro pessoal da rodoviária, que nos disse que teríamos que pegar o ônibus à 1h da manhã.

Dia 11 – segunda-feira 18/07


- Arequipa-Chivay, Cañón del Colca, Arequipa -

Negociamos, por não dormirmos mais ali e sim no ônibus, um preço mais acessível no hotel e saímos correndo pra rodoviária. Pra isso, pegamos um táxi que passava, recusando o outro, recomendado pelo "devagar" dono do hotel (com quem não nos simpatizamos nem um pouco), muito demorado e mais caro. Adeus, quarto dos sonhos! Entramos no ônibus e apagamos. Acordamos já numa cidadezinha gelada – Chivay –, que seria o ponto de partida pro Mirador del Cóndor; disso soubemos depois de muito tempo perguntando – os peruanos não gostam de turistas que fazem passeios por conta própria e, por isso, atendem mal. Depois de entrar num ônibus seguindo os gringos, enfim, o mirante. Nos separamos pra apreciar o desfiladeiro imenso (o maior canyon do mundo, mais de duas vezes o Grand Canyon, nos EUA, e o segundo ponto mais alto do Peru, com mais de 5 000m de altitude – o primeiro veríamos em Huaráz) e evitávamos um fiscal que alternava entre nós dois pedindo pra apresentar os tíquetes de visita do local – um absurdo (depois veríamos que isso era uma constante no país) de US$7,00 pra cada. Visitamos tudo, assistimos aos condores dando rasantes sobre nossas cabeças e, claro, de graça. O passeio com a agência realmente não valeria a pena. Pra voltar é correr e entrar aos empurrões num dos poucos ônibus que nos deixam em Arequipa. Não corremos o suficiente e viajamos muitas horas em pé no corredor amontoado de gente, já agora num calor impressionante, sem espaço pra tirar as jaquetas e blusas de frio e até cochilando um pouco pelo cansaço e pelo sono misturados. Assistimos a todo o canyon pela janela. Depois de muita demora, estávamos de novo em Arequipa e comprando a passagem pra Lima (pra chegar em Huaráz).

Dia 12 – terça-feira 19/07


- Arequipa-Lima, Lima-Huaráz -

A viagem até Lima, pra mim, foi bem tranqüila – simplesmente desmaiei e não vi nada. Acordei com o ônibus parado numa cidade que não sabia qual era e com um recado do ajudante do motorista que não entendi bem porque ainda estava meio dormindo, mas que fez todos descerem chateados. O Uans me disse que o motorista conseguiu quebrar o câmbio do ônibus por pura barbeiragem e na rua é que soube que estávamos já em Lima, mas longe do nosso posto de chegada. Chamamos um táxi e dissemos simplesmente “Para o terminal rodoviário.”, e o cara não entendeu. Explicamos com várias palavras e nada. Como ele queria cobrar 15 Soles, agradecemos e chamamos o de trás: 9 Soles. O de trás pediu 8 Soles. Uma moça que viu o nosso aperto chamou outro que cobrava 5 Soles – salvou a nossa chegada e ainda se achou no direito de me passar uma cantada! Depois de tentar explicar em vão pra onde queríamos ir, entendemos pelo taxista, muito mais educado e gente boa que os outros, que Lima não tem um terminal rodoviário, mas várias agências de viagem espalhadas. Assim, tivemos que rodar pelo centro pra pesquisar preços pra Huaráz. Compramos a passagem pra noite e fomos garantir o almoço. Comemos nosso pollo con papas fritas, o nosso menu oficial no Peru e o Uans, que acabou, pra variar, antes de mim, saiu pra “resolver umas coisas" me deixando de molho assistindo TV no restaurante e vigiando as mochilas. Assisti a Os Simpsons, Chaves (experiência única vê-los em espanhol!) e outros programas até que, no final da tarde, aparece o indivíduo dizendo, depois que finalmente aliviei meus joelhos, que no seu passeio visitou duas feiras, uma de artesanato e outra de importados. Faltava pouco pra saída do ônibus, mas agora eu também queria ir. Deixamos as malas no guarda-volumes e foi correndo que visitei o Centro de Lima com o Palácio de Justiça ao final da avenida, o museu e outros belíssimos prédios que não faço a menor idéia do que sejam. Voltamos também correndo pro nosso terminal e fomos informados de que o ônibus de 21h45 tinha sido cancelado (sem dizerem o motivo, que logo adivinhamos: poucos passageiros) e, assim, nos colocaram no de 22h45 – muito mais chique, sem termos que pagar nada além. Voltamos à feira internacional e o Uans comprou uma mochila pequena pra diminuir meu mico perto das sacolas de plástico que ele levava até então. O melhor ônibus internacional que pegaríamos! Comemos um projeto de sanduíche banhado a Inca Kola (só de graça mesmo pra encarar aquele refrigerante amarelo) e viajamos quase totalmente deitados a noite toda.

Dia 13 – quarta-feira 20/07


- Huaráz (dia 1: Yungay, Laguna Llanganuco) -

Acordamos antes das 6h já em Huaráz - onde, não sabíamos ainda, mas seria um dos pontos mais altos da viagem, senão o melhor deles -, pegamos um táxi que deu muitas voltas pra andar quatro quarteirões até o hotel, que era também agência de turismo, e já negociamos os passeios pra três dias. Ficamos no “quarto andar”, que na verdade era o terraço. Um quarto de duas camas (a mais larga e mais côncava ficou comigo mesmo), uma cômoda, um pequeno sofá e uma mesa redonda com duas cadeiras. O banheiro pra banho - sim, havia dois - era no final da escada, antes de sair pro terraço (fiquei preocupado com o banho e a posterior saída no sereno até o quarto). O outro banheiro era depois do tanque, do lado oposto ao primeiro, também no terraço. Ao lado do nosso quarto, uma gaiola imensa com um casal de corujas de uns 40cm de altura cada. Tomamos café-da-manhã na esquina do hotel – seriam os melhores de toda a viagem – e pegamos nossa van que, como nos outros dias todos, daria muitas e muitas voltas pela cidade, retornaria ao ponto onde a havíamos pegado, pra só depois começar o passeio; o daquele dia seria para a Laguna Llanganuco. Pra chegar lá, passamos por Yungay, uma cidade muito recente porque a primeira Yungay foi soterrada por uma avalanche da montanha Huascarán – o nevado mais alto do Peru (6 768m), que avistávamos do nosso terraço.

Paramos pra umas fotos em frente à igreja, tomamos um sorvete e vimos alguns produtos numa feira de rua. Acabamos comprando alguns de um sujeito muito simpático que puxou conversa. Ele disse que conhecia sim o Brasil e nos perguntou se conhecíamos Salvador. Dissemos que não. Então ele perguntou se conhecíamos Florianópolis. Não. Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo e outras mais... Por fim ele disse que conhecia o Brasil melhor do que nós! Ele perguntou então de onde éramos. Dissemos que de uma cidade perto de Belo Horizonte – que,claro, ele conhecia sim –, chamada Divinópolis. E não é que ele conhecia também? Disse que montou uma feira numa rua do centro que tem um quarteirão fechado onde não passam carros. Inacreditável! Os hippies gringos da Rua São Paulo com a Av. 1º de Junho são realmente gringos! E hippies!

Visitamos a lagoa, maravilhosa (achamos que aquela seria de longe a mais bonita de todas), e paramos pra almoçar num lugar muito caro, o que nos fez levar comida do café-da-manhã para os passeios dos outros dias. Dividimos um prato pra ficar mais barato e, chegando à cidade de noite, fui tomar meu banho e, surpresa: a luz do banheiro não acendia. Chamei o responsável lá embaixo e subi de volta pra ele falar que não tinha jeito mesmo e acendeu a luz do corredor que, atravessando o basculante, apenas permitia-me distinguir o xampu do sabonete no banheiro que não tinha um lugar pra pendurar nem a toalha (outra constante na viagem). Agradeci meio sem jeito e ele desceu de novo. Abri a torneira e, outra surpresa: água gelada! Chamei o cara de novo e, dessa vez, subiu comigo a mulher maluca que é a dona do lugar. Virou uma chave na parede que ameaçava dar um choque no primeiro banhista e me recomendou insistentemente pra não mexer mais nela – como se eu tivesse mexido em alguma coisa... Tomei finalmente meu merecido banho, esperei o Uans e, depois do dele, saímos pra comer. Rodamos bastante pra encontrar nosso pollo con papas a 4,50 Soles (menos de R$4,00). Comemos até entortar e caímos na cama.

Dia 14 – quinta-feira 21/07


- Huaráz (dia 2: Laguna Querococha, Chavín) -

Depois do café sensacional, saímos pra conhecer as ruínas de Chavín, nem tanto por Chavín, mas apenas porque achamos que teríamos várias coisas mais interessantes pra ver. No caminho, depois de um chá de coca muito aguado, “para combater o mal da altitude”, o guia propôs que nos apresentássemos dentro do micro-ônibus. Quando chegou a minha vez e disse que vinha do Brasil, houve sonoros “Oh”s e aplausos. Senti-me o centro das atenções. Vimos a Laguna Querococha (a mais de 4 ooom de altitude) e, mais à frente, um túnel (Túnel de Cahuish) interditado por obras com um caminhão, que mal cabia nele, retocando seu interior. Alguns de nós descemos e o atravessamos a pé – um escuro somente, e às vezes, amenizado pelo farol do tal caminhão, o que não nos evitava pisar em algumas das várias poças d’água. Do outro lado, continuamos o caminho de descida e, muitos metros abaixo, o carro nos pegou pra continuar o passeio.

Mais alguns quilômetros e paramos para os mais aventureiros descermos uma quebradeira apostando corrida com o micro-ônibus que daria voltas pra chegar até lá embaixo. Claro que o Uans e eu chegamos antes do carro e ficamos, os dois e o micro-ônibus, esperando a chegada demorada dos demais – desceram até os que não eram nada aventureiros (havia pessoas já avançadas em idade) e nos atrasamos bastante. No almoço, em outro lugar caro, meiamos um coelho assado (finalmente o Uans aceitou variar o cardápio!) e fomos visitar as ruínas de Chavín, de 1500 a.C. – excepcional! Ficamos surpresos com aquelas ruínas que acreditávamos não ser grande coisa. É impressionante e deixa, em termos de civilização (não de paisagem), como comprovaríamos mais tarde, Machu Picchu no chinelo! No final da tarde saímos de volta à cidade e o guia agora, pra viagem longa, propôs que cada um contasse uma piada e cantasse uma música de seu país. Contei algumas piadas, mas nenhuma arrancou mais risos dentre todas contadas naquela noite que a do bêbado e da freira. Não pela piada em si, mas pelo tombo que levei causado por uma freada inesperada bem na hora da imitação mais dramática do tonto, o que a tornou muitíssimo verossímil. Se eu me sentia o centro das atenções antes... Nem sei se alguém prestou atenção ao final dela. Mas minha hora de rir foi quando ninguém mais ria. A explicação fica mais simples por comparação:

Mochilão: R$ 250,00
Roupa impermeável: R$ 200,00
Tênis para trekking: R$ 150,00
Pacote pra passeio de 3 dias em Huaráz: US$60,00
Tombo no micro-ônibus na frente de todos os turistas e no meio da piada: fama de palhaço
Ver o Uans contar piada num embromation de portuñol mal falado: não tem preço!

Todos devem ter me achado louco porque na primeira frase da piada contada pelo Uans eu já não me agüentava de tanto rir... ao chegar a Huaráz, depois dos banhos, saímos pra dar um passeio por perto e procurar um lugar pra comer. Nisso, encontramos uma loja com camisetas de recordação da cidade. Comprei um moleton quase de graça e, em seguida, achamos uma que vendia várias camisas de times de futebol por um quarto do preço no Brasil. Fui muito humilde e comprei apenas uma e uma calça de marca também praticamente de graça. Pra comer, resolvemos passar numa padaria e montar uns sanduíches no hotel, o que ficou muito barato e, principalmente pra minha felicidade, com refrigerante estupidamente gelado (raridade)! Antes de dormir chegamos à conclusão de que deveríamos ter comprado muito mais camisas sem nos arrependermos. Mas ainda haveria a noite seguinte...

Dia 15 – sexta-feira 22/07



- Huaráz (dia 3: Pumapampa, fonte de água gaseificada, Laguna de Siete Colores, Pastoruri) -

O terceiro dia de passeio em Huaráz seria o Nevado de Pastoruri – que em verdade não é mais nevado –; a antiga estação de esqui está derretendo e hoje não é mais neve, mas gelo. De novo tomamos o café-da-manhã imperdível e saímos pra parada oficial do chá de coca (dessa vez mais agradável). Passamos pela região de Pumapampa, conhecemos a maior planta do mundo: Puya Raymondi – bromélias gigantes de até 12m de altura e que levam 100 anos para florescer –, tomamos um gole numa fonte de água gaseificada, passamos pelo mirante da lagoa de sete cores e vimos algumas pinturas de arte rupestre. O micro-ônibus nos deixou a 5200m de altitude e o guia disse que já éramos vencedores de estarmos ali e que se não quiséssemos chegar ao topo, tudo bem. Sem comentários pra ele! Alugamos botas impermeáveis (que, pelo tamanho apertado, quase necrosaram meus dedos) e iniciamos a subida. O início da caminhada é na pedra e os moradores locais oferecem mulas para dar uma força a quem precisa. Em seguida, devido ao acesso difícil, eles oferecem as costas pra carregar os turistas (até as crianças locais carregam filhos de turistas). Quem sobe sozinho tem a oportunidade de parar de vez em quando e olhar pra trás – uma vista sensacional dos outros nevados ao fundo e pequenas lagoas ao redor da subida. Logo quando chegamos à parte congelada, avistamos uma pequena lagoa que abria uma gruta no gelo. Entramos por ela e paramos um pouco abaixo, onde havia outra lagoa – uma das visões mais espetaculares de toda a viagem. No teto da gruta, várias camadas de gelo abertas, uma após a outra, até a última também aberta (uns 40cm de diâmetro), por onde se via o céu. Voltamos pra cima porque não teríamos muito tempo para o passeio e ainda tínhamos o topo pra alcançar. Depois do buraco no gelo que vimos desde aquela lagoa, ficamos cismados com todo lugar onde pisávamos, com medo de vazar em alguma daquelas galerias. O Uans, apressado, correu pra chegar logo no topo e eu fiquei tirando fotos de vários ângulos e paisagens. Num certo ponto lá encima, a neve acaba numa descida íngreme de uns 5m e de novo aparece a pedra, que vai até o cume. O Uans já estava do lado de lá e me disse que a descida até a pedra estava a uns 7m à minha direita. Fui procurá-la e, claro, não encontrei. Andei muito sempre achando o Uans maluco com seus 7m que eram na verdade 27m. Por fim, cheguei numa parte um pouco mais fácil de descer e impossível de subir de volta – claro que não pensei neste pequeno detalhe na hora de descer. Literalmente pulei na pedra lá embaixo e comecei a subi-la. Na metade do caminho, aparece o Uans lá na frente perguntando o que eu estava fazendo tão longe, a passagem era logo ali onde ele estava e eu abandonei minha subida aventureira, desci junto ao gelo e peguei a trilha certa. O Uans já estava voltando e dizendo que o guia chamava desesperado para o almoço. Perguntei se faltava muito até lá encima e ele disse “uns 30m”. Subi como se estivesse no nível do mar e o topo... incrível! A pedra se divide em V e dali se avista a cordilheira desde um lado até o outro, interminável. Lá embaixo, um desfiladeiro de não se imaginar quantas centenas de metros e, ao longo de todo o horizonte, as montanhas da Cordilheira dos Andes fazendo uma fila até não se poder mais ver. In-crí-vel! Estava sozinho ali no alto e fiquei ainda uns minutinhos curtindo aquele momento estirado numa pedra lisa bem na beirada do abismo. É indescritível a sensação de estar tão alto e diante daquela paisagem diferente de tudo que já vi, tanto ao vivo (claro) quanto em fotos ou filmagens. Preocupado com a pressa do guia, desci a pedra de volta como um louco e pra subir de novo pro gelo tive que dar um salto e literalmente me abraçar a ele pra conseguir chegar lá encima. Com a ajuda dos joelhos aquela subida ficou mais fácil e as luvas ficaram destruídas e, encima do gelo, a descida rápida deve ser atenta às possíveis galerias – pode-se ver e ouvir com nitidez a água que escorre por baixo de onde se pisa. Os tombos eram evitados com a mão esquerda por trás do corpo e, com isso, as luvas são ainda mais severamente castigadas. Num dos pulos, para não torcer o joelho na queda, dei outro pulo, dessa vez pra trás, que me virou de lado e me fez cair de costas num vão de uns 60cm. A vista das botas no ar e o céu muito azul no fundo me deu vontade de tirar uma foto, mas o atraso não deixou. Terminei a descida e, no micro-ônibus, todos esperamos até uma hora depois do combinado pra sair para esperar um dos caras que tinha também ido até o topo e que chegava com rasgos na perna da calça e mancando – nada grave, aparentemente. Foi um passeio muito bonito e muito cansativo também.

De volta à cidade, depois dos banhos, saímos pra comprar as camisas que não tínhamos comprado na noite anterior (umas sete pra cada), descarregar as fotos em CD, pegar informações de Cuzco na internet e mandar e-mails. Depois fomos jantar num outro restaurante também muito bom e, claro, com refrigerante gelado. De volta ao hotel, o Uans percebe que havia esquecido uma sacola com camisas e calças compradas numa loja em outra loja ao lado. Ele voltou até lá, mas às 23h30 já estava fechada. Isso atrasou nosso passeio do dia seguinte em 3h, porque era a única loja na cidade que não abria mais.

Dia 16 – sábado 23/07


- Huaráz (dia 4: Laguna Churup), Huaráz-Lima -

Acordaríamos às 6h, mas o incidente das camisas nos fez abrir os olhos somente às 8h. Nada de a loja abrir e tomamos nosso sagrado café-da-manhã – nunca poderia imaginar que tomaria tanto suco de laranja nessa viagem! –, pegamos a dica de onde pegar a van pra fazer o passeio daquele dia (que seria por conta própria, ou seja, sem pagar a agência) e ficamos esperando até as 9h30, quando a loja finalmente abriu e a sacola, ufa, estava lá. Pegamos a van às 10h até a comunidadezinha de Llupa, a 3650m acima do nível do mar. A partir daí, o caminho seria todo a pé até a Laguna Churup, a 4450m. Na caminhada desde Llupa, que é de uma subida muito leve, quase plana e passando por Pitec (um povoado ainda menor, quase imperceptível), até a entrada do parque, paramos três vezes pra literalmente sentar e descansar. Quando chegamos à entrada do parque, onde os micro-ônibus deixam os turistas para subirem a montanha com todo o fôlego, o porteiro nos disse que faltavam ainda 2 horas de subida até a lagoa. Primeiro achamos que era brincadeira, mas ele não estava sorrindo... E o pior é que, a partir de lá, a subida seria muito forte. O Uans, pra variar, desapareceu na frente e eu fiquei afastado pra curtir a vista impressionante e tirar umas fotos. Mas como não teríamos muito tempo até a última van para Huaráz (18h), não podia ficar parado. A subida é muito cansativa e os dois nos lembramos imediatamente de quem, dos nossos amigos que ficaram, seria o primeiro a desistir se estivesse ali. Quando se olha pra cima, o topo está bem distante e só depois de andar muito e chegar nesse “topo” é que a gente percebe que há outro “topo” a ser alcançado, e assim por diante, sem parar. Não sabíamos exatamente a que distância estávamos, apenas seguimos a trilha, separadamente. Num certo ponto, diante de uma pedra de apenas uns 3 metros de altura, sem muitos lugares de apoio e com um difícil acesso pra mim que estava de mochila, fiquei uns 3 minutos pensando em como subir e quase desisti. Depois desse tempo, que aproveitei também pra pegar mais fôlego, fiz a subida bem devagar e calculada. Lá de cima, apenas olhei pra baixo e calculei o estrago que seria uma queda dali. Logo depois dessa subida desgastante, pois uma mochila de 5kg pesa uns 50kg na altitude, a trilha estava logo à frente, mas meu instinto infalível pela escolha de caminhos difíceis entrou mais uma vez em ação e fui parar na trilha do povo que chega à entrada do parque de micro-ônibus e sobe com todo o gás fazendo trekking pelas subidas mais subidas de todas! Mal sabia eu que estava entrando na trilha do mais cansativo, arriscado e, por isso, melhor trekking da minha vida! Foi muito, muito bom, gastei ao todo meia hora a mais que o Uans pra chegar lá encima, mas dentro das 2h previstas pelo cara da entrada e passando por paredões totalmente em pé, literalmente abraçado à pedra.

Lá encima, nem foto descreve... A lagoa, a 4450m, apresenta simplesmente todos os tons de verde e azul ao mesmo tempo, cores que nunca tinha visto, e é cercada de paredões de muitos e muitos metros de altura. Ao fundo está o Nevado Churup. Primeiro dei uma volta ao redor dela e parei pra descansar numa pedra afastada, longe dos gringos. A vista muda constantemente e impressiona como se fosse a primeira a cada dez passos que se dá. Depois, voltei ao ponto principal e arrumei uma pedra plana triangular bem na beirada da lagoa e deitei pra relaxar – como disse ao Uans, meu limite de resistência física tinha ficado a muitos metros abaixo naquela subida toda. Uma das melhores fotos foi tirada ali, em que apareciam meus pés cruzados um sobre o outro na beirada da pedra, logo em seguida a lagoa de várias cores e, ao fundo, o paredão. Dali mesmo aproveitei pra encher minha garrafa de água e esvaziá-la duas vezes boca abaixo de uma vez. Enchi uma terceira vez pra descida e, saindo dali, um francês me perguntou se eu tinha bebido daquela água – claro! e se não tinha problema; minha resposta foi muito natural: “Não senti nada de estranho.” e, diante da cara de “não acredito que ele teve a coragem” que ele fez, acrescentei pra tranqüilizar: “Não tem problema, é água de nevado, muito limpa...”. Não sei se tranqüilizou mesmo ou se piorou porque fui rapidamente garantir meu almoço (que tinha ficado com o Uans): duas esfihas que, de tão frias, só comi uma e matei (parte de) o resto da fome com biscoitos de chocolate e pedaços de chocolate em barra.

Descemos muito rápido – pra baixo, até a altitude ajuda – e preocupados com o horário de saída da última van pra Huaráz. Pelo que subimos, ainda tinha muito, mas muito chão mesmo pra descer. Fomos até rápido demais e deu tempo ainda pra parar numa pedra que fazia uma ponta de frente para o desfiladeiro, para o lado da cachoeira, e curtir a paisagem. Continuamos a descida depois de uns 15 minutos e chegamos ao ponto da van um pouco antes das 16h – muita folga. Esperamos impacientemente por meia hora e voltamos pra cidade. Nossas bagagens mais pesadas tinham ficado no hotel (sem custo adicional, claro) e fomos negociar com a louca da mulher um preço legal pra tomar banho. Ela teve a audácia de cobrar 5 Soles de cada um! Isso depois de dizer que adorava brasileiros e tinha ido com nossa cara! E naquele banheiro que já conhecíamos! Depois dessa, combinamos de cada um gastar pelo menos uma hora debaixo d’água, só por desaforo. Com isso, meu banho durou ao todo uma hora e meia e o do Uans, uns 15 minutos a menos, acho. Depois saímos pra comprar passagem, descarregar as fotos em CD e mandar notícias por e-mail; deu tempo também de fazer minha segunda ligação, dessa vez pra Cris, em Divinópolis – muito barato, 2 Soles por alguns minutos que revigoraram os ânimos (dos dois, acho). Só não pensei foi no fuso-horário, no Peru a diferença é de duas horas antes e eu liguei depois das 21h, mas estavam todas acordadas na casa dela. Mais tarde fomos procurar outro restaurante (estávamos a fim de comer bem) e acabamos encontrando o melhor deles – de um cara de Lima, que tinha mudado pra lá em fevereiro, bigodudo e careca, parecendo um marinheiro de filme americano, daqueles que andam com uma peixeira na mão e um lenço na cabeça. Ele não ligou de comprarmos Coca gelada em outro lugar e até mandou seu filho ir buscar uma para nós (não permitimos, claro), nos serviu um respeitoso prato de frango frito e bateu um bom papo. Pegamos um ônibus de noite com rumo a Lima porque não havia estrada direta pra Cuzco dali – isso queria dizer que passaríamos obrigatoriamente pela “rodovia da morte” peruana: Lima-Cuzco. No ônibus, assistimos ao Million dollar baby e apagamos depois do passeio mais desgastante da viagem; e, um dado que adianto e que me será importante mais tarde nesse relato: usei o banheiro nessa madrugada, no ônibus, pela última vez até o dia seguinte às... bom, depois eu falo.

Dia 17 – domingo 24/07




- Lima-Nazca, Nazca-Puquio, Puquio-Cuzco -

Acordamos em Lima pela manhã e, na indecisão entre Nazca e Arequipa, compramos passagem pra Nazca mesmo (que já é bem perto de Arequipa) porque todos os ônibus pra Cuzco desde Lima estavam cheios, inclusive os que sairiam no dia seguinte. Saímos para o café, com o detalhe que o Uans toma e me passa um susto de repente procurando a carteira nos bolsos e dizendo que tinha sido roubado. De volta ao “terminal” (o nosso, dentre vários) ele viu que tinha deixado tudo na mala que estava no guarda-volumes.

Tome viação Flores pra Nazca! Um dos piores – é difícil saber qual o pior – ônibus de toda a viagem. Ele já sai da rodoviária sujo – farelos de tudo o que existe pra se comer espalhados no chão, garrafas plásticas vazias y otras cocitas más –, fora os vendedores de tudo o que existe pra comer, beber, usar, pendurar, passar, ler... e fora o DVD no último volume (os peruanos em geral não têm a menor noção quanto a isso) com um faroeste do Clint Eastwood na adolescência, com tiros pra todo lado – durma quem puder! Uma mulher chegou a pendurar seu “cabide” de tralhas encima de nossas cabeças pra andar mais tranqüilamente pelo corredor – só rindo pra não jogar aquilo pela janela! O pior dessa história é que esses vendedores todos viajam conosco até as cidades que há pelo caminho.

Passamos por lugares horríveis e não menos sujos que o ônibus e paramos num restaurante à beira mar – de novo o Pacífico! – que era simplesmente asqueroso. Os pratos servidos tinham suas amostras no balcão e não sei como os peruanos interpretavam aquilo, mas, em português, nós lemos como: “Vão embora, não há comida pra você aqui!”, ou pelo menos: “Agüente mais um pouco, você nem está com tanta fome assim...”. Numa televisãozinha, lá no fundo, clipes barangos (ao extremo!) de música baranga (idem) num volume descomunal da mesma cantora, também baranga. É inacreditável o mau gosto musical com que tivemos contato nessa viagem. Almoçamos os famosos e salvadores biscoitos de chocolate pra segurar as pontas, passamos pela cidade de Ica, onde se sentiu mais forte o terremoto de junho – agora sem maiores problemas – e, finalmente, chegamos a Nazca às 16h30, mais ou menos.

A cidade, muito feia, ressalte-se, assim como Lima, não possui um terminal, mas várias agências separadas. Um taxista circulou conosco por elas e, também assim como Lima, não havia vaga em nenhum ônibus pra Cuzco naquele nem no dia seguinte. Foi o mesmo taxista quem disse que é comum negociar com os motoristas de ônibus pra se viajar, pagando menos, na cabine ou até no bagageiro, o que dependeria da boa-vontade deles. E haveria um saindo dali às 17h. Quando ainda pensávamos na possibilidade de esperar, ele teve a idéia de chamar um caminhoneiro à nossa frente pra nos dar uma “carona” – entre aspas porque, claro, pagaríamos um pouco do valor da passagem. Ele aceitou e estava saindo naquele momento. Nossa idéia era amanhecer em Cuzco pra aproveitar o dia já com um passeio. Ouvíamos a rádio La Caribeña – "esa si, suena", que, pra nossa felicidade, no meio da Cordilheira dos Andes, já no início da viagem, não pegava mais. Forneci meu mantimento de boa música brasileira que agradou bastante ao nosso motorista.

Já de início, duas preocupações: primeiro a estrada estreita – já estávamos na rodovia da morte – onde só cabia um veículo de cada lado e, depois disso, um desfiladeiro de até 700m; segundo a viagem, que era só de subida, o que, num caminhão com carga dupla como aquele, significava uma média de 25km/h. O motorista nos disse que chegaríamos em Cuzco somente na noite do dia seguinte. Pra quem queria economizar tempo, digamos que aquilo era a maior furada de toda a viagem. Mas aquela viagem pra Cuzco estava só começando...

Paramos em Puquio, a duas horas e meia de Nazca – no nosso caso, quatro horas e meia. O caminhoneiro foi muito gentil e nos deixou junto do ônibus que pegaríamos pra Cuzco (outra “carona”). O Uans foi acertar com o motorista do ônibus e eu fui pegando nossas malas no caminhão – deixei uma das minhas fitas com nosso amigo de presente. Nossa passagem teria um preço menor porque viajaríamos na cabine do motorista e, saindo naquela hora (mais ou menos 21h30), chegaríamos em Cuzco de manhã no dia seguinte, como queríamos; mas ainda nesse ponto, a viagem estava só começando... Pra guardar as malas no bagageiro foi um custo. Pra começar, o ônibus estava com o dobro do tamanho por causa das bagagens que iam encima. O menino que ajudava o motorista abriu o primeiro maleiro: uma caixa de madeira enorme, do tamanho do bagageiro (onde um acabava a outra começava) e, sem chances, não cabia nem uma mosca. Ele abriu então o segundo: outra caixa idêntica! Quando abriu o terceiro, só vimos as asas de um peru que se debatia agarrado à porta! Pelo menos achamos que era um peru – àquela hora da noite e com tanta agitação de asas não pudemos nos certificar. Vai o menino fechar o maleiro e o tal peru desaparece lá dentro, sempre se debatendo assustado. Por fim, com as malas guardadas, tomamos nossos lugares naquele ônibus superlotado, em sua cabine também superlotada. No corredor tinha gente deitada, agachada, em pé, de forma que não dava nem pra ver onde o ônibus acabava. Na cabine, além do motorista – e sua música brega que, pelo volume, quase ocupava o lugar de uma pessoa –, havia atrás dele um velhinho muito velhinho e muito enrugado que cochilava (não sei como, com todo aquele barulho) sentado de costas pra janela e com os pés virados pro meio da tampa do motor. Do outro lado, na única poltrona ali, um cara que parecia ser amigo do menino ajudante. Nos dois degraus que davam pro corredor e os assentos do fundo, encostado na porta que tinha sido dificilmente fechada, um adulto com uma menininha de aproximadamente um ano no colo e, na frente dele, na tampa do motor, o menino ajudante. Eu fui mais à frente na tampa, servindo de apoio pros pés do velhinho, e o Uans ficou na escada de entrada do ônibus, com a porta como travesseiro – o importante é chegar em Cuzco pela manhã e, pagando pouco, então, era tudo que precisávamos. Perto das 23h paramos para el baño – um descampado ao lado da estrada –, tirei água (acumulada da madrugada anterior) dos joelhos, cotovelos, tornozelos... um minuto inteiro sem parar.

A viagem começou animada, apesar da tensão: a estrada continuava estreita e o desfiladeiro agora chegava a 1000m; o pequeníssimo acostamento antes dele parecia um cemitério – um monte de cruzes brancas, uma atrás da outra, que nos acompanhariam o tempo todo até o final da viagem –; o ônibus era um estilo Teixeirão BH-Divinópolis antigo, pesado de malas e pessoas daquele jeito e, pra ajudar, o motorista pisando muito – em alguns momentos ele fazia 80km/h! O bate-papo entre todos na cabine (com exceção do pai com a menina e do velhinho que dormia) estava animado principalmente quando souberam que éramos brasileiros, o que acabou nos desviando a atenção da estrada e nos deixando menos tensos.

Dia 18 – segunda-feira 25/07


- Puquio-Cuzco, Cuzco, Cuzco-Urubamba, Urubamba-Ollantaytambo, Ollantaytambo -

Mais tarde, porém, mais ou menos a 1h30, todos no ônibus dormiam com exceção de mim e do Uans. Não citei o motorista porque até esse teve seus cochilos – literalmente! Estávamos distraídos e só não dormíamos porque a estrada era assustadoramente perigosa quando percebemos que o nosso motorista dava umas pescadas de boca aberta que nos fazia arregalar os olhos. O Uans não agüentou o sono e apagou sentado na escada. A cada curva ele batia na porta com a cabeça e eu apoiei meu joelho contra as costas dele pra firmá-lo naquele “travesseiro”. Agora sim, só eu não tinha dado meu cochilo naquele ônibus e, preocupado, puxei assunto até onde não tinha com o motorista. Perguntava sobre Nazca e ele só dizia “No sé.”, perguntava sobre Cuzco e: “No sé.”. Foi o bate-papo mais difícil e tenso da minha vida, até que ele mesmo apareceu com seus assuntos e ficou mais fácil.

Depois de manter não sei como o motorista e a mim mesmo acordados por várias horas, ainda de madrugada, ele me invade o acostamento e entra numa estradinha de terra e cascalho também de subida e também com o abismo enorme ao lado, com a pequena diferença que, dessa vez, só cabia (e mal) o próprio ônibus e, se algum veículo aparecesse descendo do outro lado, ficaríamos parados ali até não sei quando. Mas a paisagem não dava a menor impressão de existir um só ser vivo num raio de 100km! Não parávamos de subir e, quando parecia que estávamos sendo seqüestrados, eis que surge uma cidadezinha no meio daquele nada! Paramos na praça central (centro que devia ser toda a cidade) e descemos pra que as pessoas de trás pudessem descer: o ônibus esvaziou. Onde menos esperávamos, desceram 95% dos passageiros e, até que todos saíssem e, depois deles, suas bagagens, foi uma hora e meia. Pra nosso alívio, trocou-se o motorista, que foi dormir no maleiro, então escolhemos nossas poltronas e, finalmente, pude dormir algumas horas naquela noite. Poucas, porque não passou muito tempo, o menino ajudante do motorista me chamou pra ver alguma coisa que não entendi com as nossas malas. Quando desci, ele me disse que estávamos em Abancay – que estaria, pelo que tinha visto, uns 200km de Cuzco – e que aquela era a parada final daquele ônibus, teríamos que pegar outro que estava saindo dali naquela hora (mas, claro, teríamos que pagar as passagens dele!). Deixei o menino esperando e fui acordar o Uans, que era quem tinha acertado com o motorista. Só disse que ele não ia acreditar no que estava acontecendo e ele já olhou com aquela cara de desconfiado e esperando já o impossível... Descemos e ele foi bater boca com o novo motorista, com o menino e pediu depois pra acordar o primeiro motorista. Abriu-se o maleiro. Ele acordou levantando o gorro da cara e ainda meio sonso de sono, só respondeu à pergunta do Uans sobre como tinha sido o acordo: “Cuzco.”, e voltou a dormir tranqüilamente. Nessa hora, valeu a dica dos brasileiros que encontramos na Bolívia, que já tinham passado pelo Peru e a tinham pegado de outros que também tinham passado por lá: não precisa chamar, mas apenas ameace chamar a polícia e eles vão te estender um tapete vermelho sem demora. Nisso, perdida a moral com a fala do motorista, e depois do Uans anotar a placa e usar a tática dos tais brasileiros, o menino e o novo motorista nos pagaram a passagem no ônibus, que por sinal – veja como são as coisas – era da mesma empresa. Era um ônibus um pouco menos sujo do que aquele em que estávamos, mas finalmente pudemos dormir de verdade. Paramos, já com sol, apenas pra tomar café e, de volta à minha poltrona, peguei de novo no sono – aquela noite foi a que mais o desregulou. Acordei com o Uans me entregando minha mochila pequena e falando pra tomar cuidado porque ela tinha caído do bagageiro acima da minha cabeça e estava rolando pelo corredor, bem ao lado do recente vômito dum velho, que eu nem cheguei a ver onde estava. Antes de eu dormir de novo, o ônibus parou porque a estrada estava interditada e só ouvimos o motorista: “Ih... es un asalto...”. Ficamos nos perguntando se realmente tínhamos ouvido aquilo, mas logo depois estávamos de novo em movimento. Era um pequeno desvio por causa de obras na pista. Passado o desvio, paramos de novo pra esperar um cara que veio correndo atrás do ônibus: era o menino que tinha nos dado informações boas de Cuzco e que tinha sido esquecido no café-da-manhã. Enfim, depois de muitas voltas, chegamos à cidade mais difícil de chegar nessa viagem! Não havia dúvida, estávamos no umbigo. Mal podíamos acreditar.

Na rodoviária mesmo nos informamos de como chegar ao terminal para Urubamba. Pegamos um táxi, paramos no terminal e, antes de embarcar, fomos procurar nosso pollo con papas mais barato. Comemos bem – encontramos até Coca gelada! – e entramos no micro-ônibus pra Urubamba pagando somente 3 Soles. Uma hora e meia pela mesma estrada pela qual chegamos a Cuzco. Em Urubamba só atravessamos o terminal e pegamos a primeira van dali pra Ollantaytambo – 1 Sol. Tudo isso porque, segundo informações da internet, o único jeito (tirando a trilha inca que já não tinha “vaga”) de chegar a Machu Picchu era o trem que saía de Cuzco. Saía de Cuzco, mas ele passava por Urubamba e Ollantaytambo. Assim, pagaríamos muito menos pelo bilhete de trem se saíssemos já de Ollanta – como eles chamam. Já sabíamos que, mesmo assim, ele seria caro, mas quando chegamos à bilheteria, que estava para abrir, vimos que o preço era quase o dobro do que tínhamos olhado na internet. O trem mais caro do mundo nos fez gastar US$30,00 cada um, só de ida, até Águas Calientes. E o pior, devido à intensa procura, só poderíamos pegá-lo no dia seguinte, teríamos que dormir em Ollantaytambo, acordar cedo e correr pra estação, e a passagem de volta seria para o outro dia ainda, também de manhã, teríamos que dormir em Águas Calientes. Isso, além de esgotar nosso dinheiro, nos fez perder muito tempo parados à toa – pela primeira vez – em cidades onde não havia passeios a fazer. Bom, a primeira tinha ruínas para se ver, mas como já estava de tarde e não tínhamos encontrado ainda um hotel pra ficar e precisássemos urgentemente de banho, não havia a menor condição de fazê-lo.

Encontramos, com muito custo, o hotel de que todos tentavam nos informar (os peruanos que conhecemos têm uma incrível falta de noção espacial e de boa vontade pra informações). Uma menina de uns dez anos nos atendeu muito bem (o que destoou gritantemente dos demais peruanos) e nos mostrou o quarto onde dormiríamos. Tinha quatro camas e já entramos ocupando as quatro. Fui o primeiro a ir atrás do banho. A mulher de lá me mostrou e deu informações precisas do banheiro. Fiquei impressionado e quase voltei só pra gritar pro Uans que aquele banheiro tinha lugar de pendurar até o chinelo, se eu quisesse! Mas o cansaço não me permitiu sair dali e, quando finalmente entrei: água gelada! Claro, já estava acostumado, não se pode cantar vitória antes da hora. Vesti de novo minha roupa, chamei a moça e ela disse que não tinha conserto, mas que tinha outro banheiro. Vamos lá. Esperei uma gringa sair dele e entrei com minhas sacolas. Depois de agradecer à moça e fechar a porta, bom, no caso, encostá-la, porque não tinha trava nem trinco nem nada pra fechá-la, percebi logo que não havia lugar pra pendurar nada, nem mesmo a toalha. Mas minha atual preocupação era mesmo a porta, já que o banheiro não oferecia nenhum canto pra me esconder caso um vento a abrisse. Pelo menos a água é bem quente. Tomei meu banho sem maiores problemas além da constante desconfiança, que me fazia olhar fixamente para a entrada enquanto estava debaixo do chuveiro, que ficou mais aguçada quando ouvi vozes de gringas lá fora que conversavam baixo e riam muito. Depois disso, foi só procurar um bom jantar com nosso menu oficial. Claro que não sem passar raiva com as informações imprecisas e mal-dadas e com o péssimo atendimento das pessoas dos armazéns – isso porque só queríamos comprar água, chocolate e biscoitos pro dia seguinte! Voltamos pro hotel, onde fomos apresentados ao companheiro de quarto, um cara do País Basco aparentando um jogador de rúgbi, e apagar de sono.